terça-feira, 3 de maio de 2011

Velho caderno de recordações

VELHO CADERNO DE RECORDAÇÕES

Aquele dia amanhecera igual aos demais, seco e quente para agosto, pois ainda era inverno. Nenhum sinal de chuva, e bem que estávamos precisando dela; já fazia meses que não chovia e as perspectivas eram de que, se não chovesse nos próximos dias, começaria o racionamento de água na minha cidade. Em alguns lugares do sul do País isso já vinha acontecendo. Eu não me lembrava de uma seca tão grande como aquela. Estava lendo sobre isso no jornal daquele dia, quando o interfone do meu apartamento tocou e o porteiro anunciou uma visita para mim. Era a minha amiga Cida, que há anos vinha prometendo essa visita, para devolver-me um caderno de recordações que eu deixara com ela há mais de quarenta anos, desde o dia em que, ainda estudantes do ginasial, deixei com ela para que nele escrevesse uma poesia e respondesse a um questionário; coisa de adolescentes, muito comum naquela época, nos distantes anos cinquenta.
Na nossa pequena cidade o curso ginasial chegou muito tarde. Da primeira turma faziam parte adolescentes de 14 a 16 anos, entre eles eu e Cida. Conhecemos-nos no Grupo Escolar e ficamos amigas. Não pertencíamos à classe dos mais privilegiados que podiam estudar fora, em centros maiores, em colégio interno. Após o primário nós, os menos privilegiados, começávamos trabalhar para ajudar no orçamento familiar. Aí chegou o curso ginasial e a primeira turma era uma classe de quase 40 alunos. O curso era noturno, pois os professores eram profissionais liberais (médicos, dentistas e o padre) e os alunos, quase todos já trabalhavam. Na hora do recreio nos reuníamos em grupinhos, cada qual conforme as afinidades, e conversávamos sobre tudo, ríamos muito e as fofocas rolavam soltas...
Nossa cidade era pequena, mas muito efervescente. Um comércio bem ativo e progressista. Os lazeres na época eram um cinema, um clube social, um grupo de teatro amador, constituído por homens e mulheres comuns, sem nenhuma formação teatral, porém muito bom. As apresentações eram no palco do cinema. Havia também uma rádio, com programa de auditório e tudo.
   Depois que me casei eu e Cida ficamos muitos anos sem nos vermos, porque me mudei para uma cidade maior. Certo dia soube que ela também estava morando na mesma cidade que eu. Um dia nos encontramos na rua, e Cida me perguntou se eu não me lembrava do meu caderno de recordações do tempo de ginásio, que estava com ela. Respondi que não. Então, ela me disse que qualquer dia iria me visitar e levar o meu caderno. Ela era agente de turismo e viajava muito. Não veio, e se passaram mais alguns anos. Um dia recebi um telefonema dela, dizendo que estava convocando nossos antigos colegas do primeiro ano ginasial para a festa de 50 anos do agora Colégio Estadual, e que nesse dia levaria meu caderno. Chegou o grande dia da festa. Mais da metade dos alunos e o diretor daquele tempo estavam presentes no jantar de aniversário. Alguns dos colegas e professores já haviam morrido, outros estavam doentes ou impossibilitados de ir. Foi muita emoção reencontrar a turma. Todos na faixa dos sessenta e tantos anos. O tempo que tudo muda, mudou também a fisionomia de alguns, então era aquela alegria saber quem era quem.
Fui à festa muito ansiosa para rever os meus antigos (as) colegas de classe e, também, o meu caderno de recordações. Mas, a Cida se esqueceu de levá-lo.
Agora o porteiro do prédio me anunciava a visita da minha amiga, que vinha me devolver o velho caderno. Quando o tive em minhas mãos, elas tremiam um pouco sem saber o que ia ver nele. Mal acreditava no que estava acontecendo. Quando o entregara a ela, ele era novo, e hoje o recebo de volta bem velhinho, amarelado pelo tempo, a capa rasgada e uma folha solta. Foi uma emoção muito grande tê-lo de volta. Não pensei que fosse ser assim.
Depois que ela se foi, comecei a folhear meu antigo caderno. Revi-me dos dezesseis aos dezenove anos. Por aquelas páginas que eu mesma ilustrei, com desenhos e recortes de atrizes e atores da época - era fanática por cinema - iam aparecendo, como num filme, os rostos dos amigos e amigas, entre eles, aquele que viria a ser meu namorado, noivo e marido, o Jota; também professores e colegas de trabalho.
   No final daquela tarde, após a partida da minha amiga, o tempo mudou de repente. Nuvens escuras apareceram e um vento forte vindo do noroeste trouxe uma chuva gostosa que lavou a terra e refrescou a tarde. Assim como fez o meu velho caderno com a minha emoção.
Adélia